“O passado é um segundo coração que
bate em nós”
(Henry Battaile -Dramaturgo Francês)
Paulo Konder Bornhausen
Quando menino estive umas poucas vezes na capital,
geralmente só de passagem, oportunidade em que com meus pais íamos para as
Termas da Guarda. Ainda estudante de Direito na PUC do Rio de Janeiro,meu pai
elegeu-se Governador, vinha visitá-lo e à minha mãe, algumas vezes ao ano.
Mas pouco saia do Palácio Cruz e
Souza onde moravam.
É verdade, residiam no velho e belo Palácio onde
viviam o dia-a-dia e lá ele trabalhava.
O prédio abrigava além do Governador e sua mulher, o
gabinete oficial, os salões de recepções, a Casa Militar e Civil, o Rádio
Amador, e em uma de suas alas, a Secretaria do Interior e Justiça que em 1958
iria ser eu seu titular, no Governo Heriberto Hulse.
Foi somente em 1954 quando me elegi
Deputado Estadual é que conheci realmente a nossa capital. Um cartão postal que
tinha como seu principal símbolo a ponte Hercílio Luz, o único acesso do
Continente à Ilha do Desterro, ornamentada por sua indescritível beleza
natural, beleza que nem a evolução dos temposos roubou.
Sua população era muito pequena, menor
que Joinville e Blumenau, mas constituía um privilégio morar aqui. Fora os
deputados e seus familiares a maioria do povo era “mané”. Os imigrantes, na
maioria gregos ou libaneses e seus descendentes dominavam o comércio que era
bem modesto.
Nossas estradas de acesso a capital
e as que ligavam as praias do Norte e do Sul da Ilha eram uma calamidade,embora
hoje estejam também em péssimas condições. Não havia asfalto. Os buracos, as
pedras,predominavam, com uma poeira insuportável nos dias de sol e um atoleiro
tremendo quando chovia.
Se destacavam além Ponte Hercílio Luz, a bela figueira
centenária da Praça XV, o Mercado Público, o Palácio Cruz e Souza, o Teatro
Álvaro de Carvalho, o prédio da Assembléia Legislativa e a nossa Catedral Metropolitana.
Falava-se da quantidade de praias
que circundavam a Ilha sobre as quais os “bandeirantes” contavam maravilhas,
porém do que se conhecia, o “chique” era a praia de Coqueiros e à distância a
Praia de Canasvieiras, locais onde ficavam as casas de veraneio dos mais abastados.
As demais eram de difícil acesso, e abrigavam somente os pescadores.
Prédios, além do Hotel La Porta,
haviam quatro ou cinco. Os dois maiores construídos na gestão do Irineu, o
prédio das Secretarias, que hoje abriga a Prefeitura e o prédio das Diretorias,
além do prédio do IPASE.
O Hospital de Caridade, outro
símbolo da Cidade era o mais conceituado, não só em Florianópolis como de todo
Estado. O aeroporto, modestíssimo, com um pequeno movimento de aviões, da
Panair, do Cruzeiro do Sul, Taba e Varig além dos hidro-aviões, que desciam na
baía Sul, perto do Mercado Público.
Em Itajaí, por exemplo os
hidro-aviões da Taba eram os mais presentes e desciam no rio junto ao Porto.
Neles muito viajei.
Hotéis considerados modernos tínhamos o Lux, do
Osvaldo Machado, na Felipe Schmidt e o Querência, recém inaugurado. O “Ponto
Chique”, na Felipe Schmidt, era o centro de encontro dos políticos da época. O
Mercado Público,com o seu bar sobre o baía era outro local preferido dos
ilhéus. Aliás, à época ainda tínhamos um porto em que operavam os navios da Cia
Hoepke , o Max e o Carl Hoepke.
Quando menino, viajei para o Rio,
partindo de Itajaí na Carl Hoepke. Eram cinco dias de viagem quando o mar
ajudava. Lembro-me que, nesta ocasião estavam a bordo, meu primo Antonio Carlos
Konder Reis que ficaria em Santos, onde viviam seus pais e o Nestor Schiefler,
sócio de meu pai na Bornhausen & Cia de Itajaí que me acompanhava, pois eu
era de menor idade.
Voltando aos anos de 1954, para um
futuro “gourmet”, lembro-me que as opções gastronômicas eram mínimas.
Recordo-me do Rosa, do Manolo’s que era o “Troirgros” da época, do Lindacap e
na Lagoa, o Andrino e o Oliveira.
No Estreito tinham algumas
churrascarias consideradas boas. Uma delas se não me falha a memória era a
Riosulense. Santa Catarina, ou melhor Florianópolis não fora ainda invadida
pelos gaúchos que aqui chegaram em grande número depois da fundação da
Universidade, e com a Eletrosul, estavam mais fixados no Oeste onde foram
grandes desbravadores e colonizadores.
As ruas da cidade eram vazias, onde
desfilavam os velhos carros importados, pois o país se iniciava na instalação
da indústria automobilística e lançaria o “Fusca” e 1957 as Kombis, Jipes e os
Aero-Willys.
Entre eles, trafegavam as carroças,
charretes e na Praça XV os carros de molas puxados a cavalos. A centenária
figueira da Praça XV ainda não necessitava dos suportes que hoje a sustenta.
Como a Loteria Federal era
privatizada, pertencente ao Grupo Peixoto de Castro, todos jogavam no “bicho” e
os bicheiros eram figuras proeminentes na cidade. Boate, só havia a do prédio
do Ipase na praça onde até hoje fica o Teatro Álvaro de Carvalho.
Ir a Lagoa da Conceição era uma
aventura, subir o sinuoso morro, cheio de pedregulhos e quando chovia os
automóveis tinham que colocar correntes para enfrentar o lamaçal. Mas valia a
pena!
Ia com freqüência jantar ou almoçar
no Andrino, udenista roxo, com o Zico Cardoso, Fernando Farias e o Esperidião
Amim que conduzia sua caminhonete Ford, da qual era concessionário.
Na Joaquina só se chegava indo a pé
ou a cavalo.
Na Lagoa se saboreava o camarão no bafo que o Andrino
pegava na hora com sua tarrafa e os siris azulões abundantes vinham nas
“puçás”. Uma maravilha de cenário, que jamais me esquecerei.
Morava no Largo S. Sebastião, ao
lado a Casa de Saúde do conceituado Dr. Moelmann e tinha como vizinho o
Desembargador Maurílio Coimbra, sempre as voltas com os seus passarinhos. Mais
abaixo a sorveteria da Dona Cocota, mãe da Dete Viegas, o melhor sorvete da
época. Uma vez por semana uma feiralivre com produtos vendidos do interior.
A política era acirrada e sua
preferência era um dogma. A rivalidade entre os dois grandes partidos chegava a
“raia dos absurdos”. UDN e PSD dividiam a sociedade e a cordialidade entre seus
partidários quando existia, era difícil de constatá-las.
Os pessedistas freqüentavam o Clube
XII de Agosto e torciam pelo Avai e os udenistas somente o Lira Tênis Clube e
torciam pelo Figueirense. O mesmo acontecia com as concessionárias de
automóvel, açougues,armazéns e por aí a fora.
Boate como já disse era localizada
no Prédio da Ipase onde o Sabino pontificava no piano e às vezes recebia as
“canjas” da inesquecível Neide Maria e a gaita do Antonio Boabaid. Cinemas,
lembro-me do Cine São José perto da Catedral.
Todos se conheciam pelos nomes ou apelidos.
Quando falei na divisão política me esqueci de dizer
que na Felipe Schimidt onde se reuniam as personalidades da época, o bar do
Chiquinho abrigava os pessedistas e o do Quidoca, os udenistas. O mesmo
acontecia com as rádios. A Guarujá era do PSD, a Diário da Manhã da UDN. A
Anita Garibaldi do Dr Julibio Barreto era mais ou menos neutra e a “Verdade” do
jornalista de Manuel de Menezes era uma “metralhadora” que atirava para todos
os lados. Posições idênticas tinham os jornais. “O Estado” sob o comando do Jú,
Rubens de Arruda Ramos era o sustentáculo do PSD e ouso afirmar que se não
fosse a sua “pena” felina, mas sempre bem escrita o PSD teria desaparecido do
mapa. Já o “Diário da Manhã” era UDN. “A Gazeta” do Jairo Callado,tinha suas
indefinições e a “Verdade” do Menezes era o terror da sociedade, pois soltava
seus trovões,amparados pela sutil e inteligente manchete “ O que eles dizem mas
eu não afirmo”. Que Deus me perdoe,mas acho que até o nosso Arcebispo de então,
Dom Joaquim, era pessedista. Mas a verdade é que os partidos representavam um
ideal. Nascia-se e morria-se nele. Não havia esse deplorável troca-troca dos
nossos dias, que não passa de um jogo repugnante de interesses inconfessáveis.
Não haviam legendas de aluguel,a corrupção nos governos eram pontuais e
diminutas. Por outro lado a sociedade era qualificada. Pouco se conhecia de
drogas, a não ser a bebida, o cigarro e o “lança perfume” nos carnavais.
Inexistia o narcotráfico e os chamados hoje crimes hediondos eram raríssimos.
Vivia-se menos, pela falta das conquistas científicas
dos nossos dias, mais acredito que se vivia melhor.
Uma vida de melhor qualidade.
Feita essa digressão voltemos novamente a 1954.
Eram comuns os bailes de gala, traje a rigor, e o que
me recordo ser o mais importante era o do Dia da Marinha que aqui abrigava o V
Distrito Naval, onde era realizado, sendo o Almirante, a figura Militar mais proeminente
do Estado.
Quando falei em Coqueiros que era
freqüentado como a melhor praia da Ilha e por gente abastada deixei de dizer
que para lá também se voltava a turma da “fusarca” Pedrinho Luz, Joel Ventura,
Paulo “Porrada”,
Wilmar Vaz entre outros e onde
chegavam “assustavam” os presentes.
A Assembléia Legislativa, dividida sempre por poucos
de votos, era uma das atrações da cidade e o público lotava suas galerias.
Alguns aspectos ficariam gravados na minha memória,
hoje já bastante desgastada.
A rua Bocaiúva, onde resido, abrigava a grande
propriedade do Barão e era o fundo das casas que tinham suas frentes para a
Baia Norte, já que inexistia o aterro, que somente na década de 70 viria dar a
vida à nossa hoje imponente famosa Beira Mar. Avenida que, por coincidência,
divide seu nome com dois antigos adversários políticos- Rubens de Arruda Ramos
do seu início até o hotel Majestic, e Irineu Bornhausen a partir do mesmo, até
o seu final.
As grandes propriedades e mansões
estavam na avenida Trompowiski, como a do Dr. Aderbal Ramos da Silva e quase no
final a residência do Celso Ramos. No atual Largo Benjamin Constant, também
chamado “largo do avião”, pois lá caíra um teco-teco, onde hoje é o edifício
Gustavo Richard, do qual fui proprietário de um de seus apartamentos nos idos
de 1980, ficava a bela residência do Dr. João José de Souza Cabral. Na rua
Esteves Júnior, além do Colégio Catarinense, chamava a atenção a casa do
Oswaldo Rodrigues Cabral. Na rua Padre Miguelinho, número 10, estava a casa do
major Farias, aquela que mais freqüentávamos pela amizade que mantínhamos, eu e
Ivete, com a Zulma, Fernando, Nice e os seus pais e a sogra.
Lembro-me igualmente da casa em
Coqueiros, do Senador Ivo d’ Aquino que com sua esposa, foram nossos padrinhos
de casamento. Sua neta, hoje Lúcia De Vincenzi, uma das “demoiselles
d’honneur”. Também freqüentava com assiduidade a casa do velho amigo Esperidião
Amin que ficava no então longínquo bairro de Itaguaçú.
Dois outros fatos bem me recordam. Os Koerich começavam
com um pequeno comércio de atacado e o Arlindo Isaac da Costa, dava início ao
sonho de sua futura indústria de pesca. Hoje, são grandes e prósperos
empresários.
A sociedade era ativa e fina. Os
bailes se sucediam sempre ao som das orquestras. As moçoilas solteiras mais
cortejadas, para somente citar algumas, eram a Tereza Fialho, as irmãs Pedrosa,
a Vera Grijó, a Branca Gonzaga e a Lygia Moellmann. No tempo que os namoros
eram discretos nos portões das casas das namoradas.
Os líderes políticos mais destacados:
O Dr. Nereu Ramos, o Dr. Aderbal Ramos da Silva, o Dr. Joaquim Ramos, o Celso
Ramos, o Leoberto Leal, todos pessedistas. Irineu Bornhausen, Dr. Paulo Fontes,
Dr. João Bayer Filho, Dr. Oswaldo Bulcão Vianna, Heriberto Hulse, Celso Ramos
Branco, todos udenistas. Volney Colaço de Oliveira e Pelagio Parigot de Souza
do PSP, partido do Ademar de Barros, Jorge Lacerda e Luiz de Souza do PRP,
partido integralista, liderado pelo Plínio Salgado, Braz Joaquim Alves e
Ulisses Caldas, do PTB de Getúlio Vargas.
Não posso deixar de mencionar que a
Penitenciária, por incrível que possa parecer, estava no mesmo lugar onde hoje
se encontra, embora já em 1958, como Secretário da Justiça, tenha me empenhado
em retirá-la do local. Vejam só, mais de 50 anos se passaram! Com relação ao
que escrevi no início, face à deprimente situação em que residiam, o Governador
Irineu resolveu construir uma residência oficial, na
então desativada Estação
Agronômica. Agora, segundo ouço dizer, estão querendo sob pretextos
inusitados,transformá-la em museu e parque público, e como sempre acontece no
nosso Brasil, pretendem construir uma nova residência oficial, perto do atual
Centro Administrativo. Dinheiro em abundância, é que faz-nos crer!
Eram figuras notórias na época, O
grande Martinho de Haro, o nosso Zury Machado, o inesquecível “senador” Alcides
Ferreira, o “Largatixa”, eterno Rei Momo, a nega Tide, o saudoso locutor e
jornalista Adolfo Ziguelli, o Dakir Polidoro com sua “Hora do Despertador”, o
temido Manoel de Menezes, entre tantos outros. A verdade era que Florianópolis
pertencia aos catarinenses, sem que com essa afirmação
esteja descriminando a metrópole
dos dias de hoje, repleta de gaúchos, paranaenses e paulistanos, que muito
contribuem para o seu extraordinário progresso.
Meus grandes amigos eram o
Esperidião, Fernando Farias, Fernando Viegas, Ruy Hulse, Eduardo Santos Lins,
Aroldo Carvalho, Palagio Parigot, Laerte Ramos Vieira, Enio Luz, Euclides
Simões, Paulo Collares “Tatú”, Zico Cardoso, Vimar Vaz para destacar alguns dos
mais chegados.
O meu Médico e da família era o Dr.
Paulo Fontes casado com a querida e linda Ada Fontes ex Miss Santa Catarina.
Minha casa no Largo S. Sebastião
foi palco de ocasiões importantes como a recepção ao Edmundo da Luz Pinto
quando voltou do seu exílio voluntário de vinte anos.
Os colégios tradicionais eram o
Sagrado Coração de Jesus, só para as meninas e o Catarinense só para os
meninos.São José, Biguaçú e Palhoça, considerávamos municípios muito distantes.
A bela, maravilhosa capital era um
paraíso para se viver. Imponente por sua natureza deslumbrante, que se conserva
até hoje e é cantada em prosa e verso pelo Brasil afora, 60 anos depois dos
tempos que em síntese descrevi nesta crônica.
Ganhou por certo com o
extraordinário progresso do mundo de hoje, mas trouxe consigo os problemas que
vivenciamos e que tanto nos afligem.
Fico em dúvida se melhorou ou
piorou, só sei que continuo achando o melhor lugar do mundo para se viver e aqui espero estar até o meu fim, porém, nem
por isso, vez por outra me vem à mente a cidade como a conheci, em 1954, mais familiar e muito mais
charmosa, com menos conforto, mas muito mais segura e com menos problemas como já afirmei.